Na América do Sul, o Brasil é um país com características históricas e geográficas únicas e especiais. Colonizado por portugueses entre os séculos XVI e XIX, o Brasil é o único país cuja língua oficial é o português, e a sua extensão territorial é colossal – 8 milhões de quilômetros quadrados, um pouco menor que o continente europeu com os seus quase cinquenta países. Essa característica geográfica continental, abrigando uma rica e diversa combinação de biomas, além de uma população estimada em 203 milhões de pessoas (Censo 2022), poderia transformar esse território em um celeiro de prosperidade social e econômica imensurável, mas isso não é uma realidade para os seus habitantes e, em especial, para as mulheres brasileiras.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão oficial responsável por coletar e divulgar indicadores sociais e econômicos nacionais, em 2021, o Brasil registrou a impressionante marca de 62,5 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, das quais 17,9 milhões eram extremamente pobres. Em termos percentuais isso significa dizer que, em 2021, 29,4% dos brasileiros eram socialmente pobres e 8,4% extremamente pobres.
Indo mais além nos detalhes sobre os mais atingidos por esse perfil de vulnerabilidade social e econômica, registramos algo igualmente alarmante: cerca de 62,8% dos domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos estavam abaixo da linha da pobreza; além disso, a proporção de pessoas autodeclaradas negras vivendo abaixo da linha de pobreza era de 37,9%, ou praticamente o dobro da proporção de pessoas autodeclaradas brancas, cujo percentual era de 18,6%. Essa maior vulnerabilidade da população negra já seria um problema de grande escala para ser enfrentado, mas ele se torna ainda mais desafiador frente ao fato de as pessoas autodeclaradas negras serem, no Brasil, 56% da população total do país.
As organizações do movimento negro e organizações do movimento de mulheres negras argumentam que a vulnerabilidade social e econômica da população negra é resultado de evidentes e mensuráveis práticas de discriminação racial e racismo historicamente presentes na sociedade brasileira. Indo além, essas organizações argumentam que a desigualdade social brasileira tem raízes profundas no histórico de escravidão, menor acesso às políticas de inclusão social e persistente negação do racismo como variável importante à violação de direitos e cidadania desse segmento majoritário da população.
De fato, o ponto central desse debate é a necessidade de reconhecer o racismo como dimensão importante dos indicadores que confinam a população negra entre aqueles com as taxas mais elevadas de desemprego e maior participação no mercado de trabalho informal; menores salários; taxas mais elevadas de evasão escolar; menor acesso aos serviços públicos de saúde; maior vulnerabilidade nas condições de moradia e acesso aos serviços de saneamento básico. Não é um acaso que as favelas no Brasil sejam habitadas majoritariamente por pessoas negras e que, também, esses territórios sejam, em todo o país, o alvo privilegiado de ações policiais desastrosamente coordenadas pelo sistema de segurança pública.
Nesse contexto de fragilidade e violações, as mulheres negras, suas famílias e suas comunidades, são as mais penalizadas. Não há qualquer dúvida de que a violência racial é uma marca expressiva do racismo na sociedade brasileira e se manifesta de forma muito evidente e comprovada nos inúmeros casos de discriminação racial nos ambientes escolares; nos ambientes e relações de trabalho – com agravantes de assédio moral e sexual. É notável no acesso precário aos serviços públicos de saúde, sendo a violência obstétrica um exemplo incontestável de abrangência da violência racial sobre o direito à saúde e direitos reprodutivos das mulheres negras; nos indicadores de violência doméstica e familiar entre as mulheres negras; nos galopantes indicadores de feminicídio das mulheres negras – em 2020, 67% dos feminicídios notificados no país tiveram as mulheres negras como vítimas.
Importante também ressaltar os inquestionáveis indicadores de homicídio das mulheres trans e travestis negras por todo o país; os historicamente crescentes indicadores de encarceramento da população negra – em 2022, das 820.689 pessoas encarceradas, 67,4% eram negras; os impressionantes índices de homicídio no conjunto da população negra jovem e dos homens negros. Quando olhamos para a série histórica os números são alarmantes – entre 2009 e 2019, 439.740 pessoas negras foram assassinadas no país – quase meio milhão de pessoas!
Assim, e não por acaso, o ELAS+ Doar para Transformar, primeiro fundo de apoio a mulheres no Brasil, apoia, de forma sistemática, os grupos, coletivos e redes de mulheres negras em todo o país. Essa decisão é resultado de uma análise estrutural sobre o direito das mulheres à uma vida livre da violência. Indo além, a decisão do ELAS+ está pautada na crença de que a filantropia pode atuar de forma efetiva no enfrentamento ao racismo e à discriminação racial no Brasil, a partir do apoio eficaz às organizações de mulheres negras e às práticas que essas organizações empreendem na proteção e promoção social de suas famílias e comunidades, incluindo as incidências voltadas ao aprimoramento de políticas públicas de redução das desigualdades sociais e enfrentamento ao racismo.
No Brasil, o ELAS+ foi a primeira organização de apoio a iniciativas protagonizadas por mulheres a definir as organizações de mulheres negras como grupo beneficiário prioritário. Em 2022, o ELAS+ apoiou 214 grupos liderados por mulheres, o que corresponde a 79% do total de grupos apoiados. Nesse mesmo ano, lançou um programa específico para esse segmento da população – Aliança Negra Pelo Fim da Violência. Um programa iniciado pelo ELAS+, em parceria com a Fundação Ford.
Um edital nacional selecionou 16 organizações e redes com experiência de ativismo, para atuar no enfrentamento ao racismo institucional e ao genocídio da população negra; na comunicação antiviolência racial e no combate à violência contra mulheres negras e pessoas trans negras.
Além disso, a decisão do ELAS+ se baseia na crença de que a filantropia pode efetivamente enfrentar o racismo e a discriminação racial, fornecendo apoio efetivo às organizações de mulheres negras e às práticas que essas organizações empreendem para proteger e elevar suas famílias e comunidades, a fim de reduzir as desigualdades sociais e combater esse cenário. Com esse programa, o ELAS+ tem como objetivo engajar o ecossistema filantrópico para apoiar e fortalecer a liderança das mulheres negras na transformação do racismo institucional no Brasil, para as gerações atuais e futuras.
Wania Sant’Anna – historiadora, pesquisadora de relações de gênero e relações étnico/raciais, membro da Assembleia do ELAS+ Doar para Transformar e integrante da Coalizão Negra por Direitos, representando a comunidade de terreiro Ilê Omolu e Oxum (RJ)